sábado, 28 de novembro de 2015

Capítulo 6


Eu só queria um homem para chamar de meu, alguém que não me traísse e fosse um companheiro para todo o sempre.
É pedir demais?

Após me regalar com um risoto de açafrão do além – do Espírito, para ser mais exata –, atiro-me na cama e abro a caixa de fotografias. Amo máquinas fotográficas digitais, mas odeio guardar as lembranças em pen drives ou arquivos no computador. Gosto de imprimi-las para apreciar sempre que tiver vontade.
Já passa das nove da noite e nem sinal do papai. Ele é o diretor do único hospital particular de Paraty e trabalhou por anos no setor público, como cardiologista. Ainda atende alguns pacientes, mas só em casos de urgência.
Ligo o computador e o Skype. Nauane atende com a cara amassada e veios grossos da almofada da sala se desenham em sua pele branca e cheia de sardas. Seu olhar sonolento se fixa no meu e ela boceja alto.
— Dormindo uma hora dessas? Não tem nenhuma balada boa nessa cidade hoje? – incito.

— Que nada. É ressaca mesmo. O Zé e os caras vieram para cá e tomamos todo o estoque de vinho que você deixou. Em sua homenagem, obviamente. – Nanie rebate, num tom molenga. – Eu não estava a fim de sair, sem você não tem a menor graça.

— Depois eu é que sou a rainha do Melodrama. – reviro os olhos.

— Já se instalou? Como estão seus avós? E seu pai?

— Meu quarto está uma zona, não arrumei nada ainda. Estava revendo umas fotos antigas, da época da faculdade. Bons tempos aqueles. – digo, num tom saudosista.

— Algo que valha a pena me mostrar? – Nanie dá outro bocejo longo. – Porque sério, eu estou vendo duas de você nesse momento. Preciso de um banho frio e cama.

— Lembra quando fizemos uma lista do homem perfeito? – seguro uma folha dobrada entre os dedos. – E então colocamos debaixo do colchão por um ano?

— Não vá me dizer que guardou?! – ela tem um sobressalto.

— Tanto guardei como encontrei dentro da caixa de fotografias. É hilário, eu preciso ler para você.

— Pode ser amanhã, Demi? Estou sem a menor condição. Sabe aquelas velhas surdas que entendem tudo errado? Pois é, sou eu nesse exato segundo.

O barulho da porta da frente atrai minha atenção.

— Nanie, acho que meu pai chegou. Amanhã eu ligo, tá bom?

— Mande um beijo para o seu velho e gostoso pai. Câmbio final.
                                               ≈≈≈

Meu pai é daqueles coroas atraentes, com os cabelos levemente grisalhos, barba por fazer e o corpo atlético que arranca suspiros das damas mais comportadas da sociedade.
É sobre seu peito bem trabalhado na musculação que enfio a minha cara depois de despejar toda a tralha que estava engasgada na garganta. Se não chorei no colo do meu avô, estou fazendo o dobro disso agarrada ao meu velho.Suas mãos alisam meus cabelos desgrenhados e ouço a respiração cadenciada que movimenta seu tórax para cima e para baixo. Depois de um longo tempo, ele resolve perguntar:

— Está apaixonada?

— Eu não sei, acho que sim, e tenho vontade de me suicidar por isso. – retruco.

— Você sempre teve o dedo podre para escolher namorados. Com exceção do Joseph, claro.

— Pai! – dou um salto no sofá, indignada.

— É a verdade, filha. – meu pai me encara com olhos cheios de sabedoria. – Se você só atrai esse tipo de homem, a vida está lhe dando uma chance de aprender com isso. Mas, pelo visto, você ainda não compreendeu o que é necessário para seguir em frente.

— Aprender o que com as traições? A sofrer? A me descabelar? Realmente não estou entendendo o recado. Será que a vida pode ser mais direta? – bufo e cruzo os braços, irritada.

— Isso tudo vai passar, filha, não se preocupe.

Meu pai limpa a garganta e percebo que há uma pergunta entalada, doida para ganhar voz. Já sabendo do que se trata, suspiro profundamente e deixo que ele mude o rumo da conversa.

— Tem falado com a sua mãe?

Demorou para o assunto “sua mãe” entrar em pauta, já estava até estranhando o fato. Aprumo-me e descruzo os braços, trazendo os joelhos para o peito. Falar sobre minha mãe nunca é fácil, ainda mais por não ter superado a sensação de abandono que ela deixou para trás.

— Faz um mês que não falo com ela. – revelo, num fio de voz. – Jura mesmo que não sente raiva? Nem uma pontinha?

— Raiva da sua mãe? – um breve sorriso se desenha nos lábios do meu pai. – Como eu poderia? Sua mãe é um anjo, um espírito livre e aventureiro. Eu sempre soube que um casamento ou mesmo uma filha não a segurariam por muito tempo. E outra, teve a morte dos seus avós, sempre leve isso em consideração ao julgá-la.

— Um casamento eu até posso entender, mas, poxa, ela deveria ter pensado em mim antes de sair pelo mundo em sua jornada espiritual ou sei lá como chamam isso. – rebato, levemente alterada. – E quanto a morte dos meus avós, foi apenas uma desculpa que ela encontrou.

— Não sinta raiva, isso faz mal ao coração. – papai bate em seu próprio peito.

Eu tinha doze anos quando um bando de malucos se hospedou aqui na Pousada das Margaridas. Se vestiam como hippies, falavam sobre dimensões paralelas, seres ascensionados e a busca espiritual rumo a iluminação.Não entendia bulhufas do que diziam, ainda assim eu gostava de ouvir sobre outros mundos, civilizações mais avançadas e os caminhos sagrados espalhados por todo o globo.
Assim como eu, mamãe ficou fascinada. Sempre foi interessada em tudo o que é oculto, místico, esotérico. Aliás, ela atuava como terapeuta holística e mantinha um consultório até bem frequentado no Centro Histórico de Paraty.Aplicava Reiki, cromoterapia, utilizava-se de cristais coloridos e me recordo até de uma espécie de mesa com um design bem esquisito. Com a ajuda de um pêndulo e da tal mesa, minha mãe dizia ser possível medir a energia dos chacras de seus pacientes.O fato foi que, quando os tais malucos tomaram seu rumo após quinze dias na pousada, mamãe caiu em depressão. Queria a todo o custo segui-los, sabe-se lá para Deus onde.
Meu pai ficou alucinado quando ela fez as malas. Meu avós tentaram detê-la, sem sucesso. Eu chorei horrores e me agarrei à barra de sua saia, como uma criancinha birrenta.
Nada surtiu efeito, ela estava decidida.
Depois de raspar toda a herança que seus pais haviam deixado, minha mãe partiu para Machu Picchu, no Peru. Largou o consultório, os pacientes, meu pai e a mim para trás. Ainda não sei como ela teve coragem para tanto.
Vi meu pai envelhecer anos em apenas alguns meses. Mas ele não caiu num poço sem fundo como era de se pressupor. Manteve-se firme e meteu a cara no trabalho, deixando-me por conta dos meus avós. Foram tempos difíceis aqueles, principalmente por minha causa.
Entendam:
1. Minha mãe me abandonou para buscar a iluminação;
2. Eu estava entrando na adolescência;
3. Minha menstruação finalmente havia dado as caras.
Que garota de doze anos aguentaria tudo isso numa boa?
Enfim, fiz da vida dos meus avós e do meu velho um inferno. Aprontei todas e mais algumas no colégio, arrumava brigas em qualquer lugar e cheguei ao ponto de fugir de casa por quatro vezes.Passei a odiar Paraty e a pousada. Os turistas me irritavam. A alta temporada era uma tortura e eu jurei que assim que completasse dezoito anos, me mandaria da cidade.
E não é que cumpri a promessa?


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