domingo, 29 de novembro de 2015

Capítulo 7 Bônus

Dormi feito uma pedra.

Acordo com o despertador do celular aos berros. Desligo o troço no soco e arrasto-me para o banheiro. Ajeito as madeixas douradas atrás das orelhas e jogo montes de água no rosto. Meus olhos estão mais cinzentos que de costume, um tanto opacos até.
Dou um up no visual, visto uma roupa confortável e tomo o rumo do gazebo. Bolinhos de chuva e chá de camomila são tudo de que preciso para me sentir confortada nessa manhã preguiçosa.

Vejo que poucos hóspedes acordaram e meus olhos vagueiam, buscando uma mesa isolada. Arrasto a cadeira e me sento, jogando a cabeça para trás, contemplando as copas das árvores através da cobertura de policarbonato transparente.

Ainda não decidi o que fazer da vida. Ajudar meus avós na pousada é uma possibilidade interessante e meu pai ofereceu um trabalho temporário na área de propaganda lá no hospital.Sua intenção é repaginar o visual dos materiais impressos, bem como a logomarca já ultrapassada. É o tipo de trabalho que faço com as mãos nas costas. Ainda não aceitei, mas o farei.Preciso de alguns dias de descanso e também para dar um jeito no meu quarto zoado. As caixas de sapatos estão espalhadas pelo chão e socadas dentro do guarda-roupas de qualquer maneira. As roupas ainda estão nas malas e não encontrei minha escova de dentes até agora. Por sorte, sempre tenho uma de reserva dentro da bolsa.

Hoje tirarei o dia para dar um rolê pelas ruas da cidade. Já não odeio Paraty como antes, afinal, a cidade não teve nada a ver com a decisão tresloucada da minha mãe e a grande merda que fiz há dez anos.
Uma imagem toma conta da minha mente e tenho um sobressalto, com o coração aos pulos. A boca fica seca e mordo o lábio trêmulo. Tudo nesse lugar transpira o passado, ecoa as burradas e mágoas ainda encrustadas no meu espírito.
Estou entretida com a imagem, aquele rosto lindo transfigurado pelo ódio de ter sido traído. Meu avô senta-se à mesa e só me dou conta de sua presença quando pigarreia e eu finalmente aporto em terra firme.

— Dormiu bem? – ele pergunta, depositando uma cesta de bolinhos de chuva na minha frente.

— Como há muito tempo não acontecia. – afirmo. – A pousada está tranquila demais, não acha?

— Graças a Deus! – vovô ergue as mãos para os céus. – Não viu esse lugar dez dias atrás.

— O que houve?

— Em que mundo você vive, Demetria? Sediamos a FLIP, está lembrada?

Que gafe a minha. A FLIP – Festa Literária Internacional de Paraty – é só um dos mais respeitados eventos literários do mundo. São cinco dias ultra culturais que incluem debates, shows, exposições, oficinas e conta com a presença de grandes nomes da literatura mundial.

— Putz, vô, me esqueci completamente. – bato com a mão na testa. – A cidade ficou muito lotada?

— Impossível de caminhar. Tinha gente saindo pelo ladrão. – vovô ajeita os óculos na ponta do nariz. – Ainda assim, valeu a pena. Era possível sentir o cheiro da cultura e dos livros no ar. Sabe o quanto amo o aroma dos livros, não sabe?

— Sua biblioteca que o diga. – meu avô mantém uma biblioteca invejável em um dos anexos da pousada. Os turistas mais intelectuais piram no número de volumes raros e nas primeiras publicações de obras que nem são mais editadas.

— Sua avó me deu uma folga e até consegui alguns autógrafos.

— Quantos livros comprou dessa vez? – mordo um bolinho de chuva e reviro os olhos, em êxtase. — Não foram muitos. – vovô franze a testa e balança a cabeça.

— Cinquenta e oito. – vovó chega por trás e revela. – Seu avô é tarado por livros assim como você é por sapatos.

— Então essa FLIP foi como cinco dias no paraíso, é isso mesmo? – pergunto, aos risos.

— Paraíso para o seu avô, porque eu fiquei descadeirada! – vovó se inflama e completa minha cestinha com mais alguns bolinhos de chuva fresquinhos.

Os dois começam a discutir e me calo, só observando e beliscando as iguarias recheadas de celulite.Minha avó é dessas senhoras cheias de energia, que deixa no chinelo muitas menininhas de vinte anos. Os cabelos batidos na nuca são sempre tingidos de dourado, sustentando uma camada de laquê que mantém os fios tão rígidos quanto uma cerca de arame farpado.Ela é baixa, esguia e se orgulha de suas rugas, dizendo que as marcas do tempo serão muito úteis quando chegar ao Paraíso. Minha avó acredita que por lá exista uma fila especial para idosos enrugados. Não acho que a entrada para o céu esteja bombando desse jeito, mas enfim, Melhor não discutir.Meu avô é um gordinho gostoso, com os cabelos tão branquinhos quanto flocos de neve. Os óculos de aros vermelhos lhe conferem um ar cult e divertido. Ele adora calças de alfaiataria e dificilmente o vejo usando outra vestimenta. Bermuda? Nem pensar!

— Essa discussão entre vocês está divertidíssima, mas realmente preciso ir. – jogo um último bolinho de chuva na boca antes de me levantar.

— Onde vai? – vovô pergunta, ajeitando os óculos.

— Dar uma volta pela cidade. Estou precisando ficar a sós com minha pessoa maníaca depressiva.

Meus avós se entreolham, incertos.

— Prometo voltar viva e com todos os órgãos no lugar, está bem?

— Fique longe de encrencas. – vovô sacode o indicador na altura do meu nariz.

— Eu já disse, vô, são as encrencas que não me deixam em paz.

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