quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Capítulo 19 (MARATONA 3/5)


Engulo o ar com dificuldades. Acho que estou tendo uma parada cardíaca. Meu corpo estremece e sinto como se a pressão tivesse caído, juntamente com a temperatura. Joseph está estonteante, vestido todo de branco e sua camiseta, agora transparente, cola-se ao tórax de maneira inoportuna. Joga os cabelos úmidos de lado e estou quase desfalecendo com o gesto altamente sedutor.

Ai, droga, estou arfando.

Nossos olhares se cruzam em meio a nuvens elétricas. Seu semblante espantado denota que também não imaginava me encontrar por aqui, ilhada. Relâmpagos iluminam a escuridão do início da noite. O gerador está funcionando ruidosamente e só por esse motivo temos alguma claridade por aqui. Joe e Guigo iniciam uma conversa ao longe. Assim como nós, está óbvio que ele também foi pego desprevenido e está preso. Uma curiosidade começa a latejar por mais detalhes, mas me seguro no lugar.

— Arrumaremos um lugar para passarem essa noite. – a mãe do Guigo inicia, entrando no meu campo de visão. – Temos uma casa fechada, ao lado da nossa. É pequena, o gerador está quebrado, mas é melhor do que nada. Tem uma suíte grande e uma cozinha mínima, mas colchões não faltam.

Dou uma boa olhada para a tempestade que despenca do lado de fora do restaurante. Realmente não há outra saída, teremos que ficar por aqui até amanhã.

— Obrigada, Mercedes. Pelo visto, não é seguro ficarmos na lancha. – suspiro vagarosamente. – E não se preocupe com mais nada, nós nos viramos.

— Vou preparar algo para comermos e então subimos para dar uma ajeitada nas coisas. Devo ter velas em algum lugar por aqui.

Sigo até a cozinha e ajudo com o jantar. Vez ou outra dou uma bisbilhotada no salão, apenas para confirmar que Joseph ainda está lá. Numa dessas olhadelas, flagro-o me encarando. Ele desvia rapidamente o olhar e acabo de sorrir, satisfeita.
                                             ≈≈≈

E a chuva não dá trégua.

O jantar foi servido e não troquei palavras com Joseph. Estava atarefada demais, indo e vindo da cozinha a todo o momento. Quando faço menção em lavar as louças e panelas, as canadenses não permitem, assumindo os afazeres. Agradeço e tiro o avental, pendurando-o próximo ao fogão. Os caras se juntaram ao redor de uma mesa e o poker está rolando solto, com direito a apostas e tudo o mais. Passo por eles a caminho da varanda, lançando um olhar furtivo para Joseph.

O aroma da chuva é delicioso. Apoio a lateral do corpo numa grossa pilastra de madeira e assisto ao espetáculo elétrico. Adoro tempestades como essa, são tão parecidas comigo… imprevisíveis.

Sinto uma aproximação às costas. Pelo aroma de orvalho que encanta meus sentidos, já sei de quem se trata. Não me viro para fitá-lo. Continuo ali, estática, absorvendo os ares noturnos e aquela entorpecente brisa marítima. Joseph escora as mãos no parapeito de madeira ao meu lado. Meu coração se descontrola, assim como a respiração. Não quero que ele perceba o quanto mexe comigo e por isso, resolvo começar a falar para ocupar a mente:

— O que veio fazer na ilha? – giro o pescoço e preciso olhar para cima, a fim de encará-lo nos olhos.

— Lembra-se do garoto que deu entrada no hospital? Aquele com fratura exposta? – meneio a cabeça, afirmativamente. – Pois então, hoje é meu dia de folga e vim para uma visita domiciliar. Seu pai comprou um barco para consultas desse tipo, totalmente gratuitas. Apesar de sermos um hospital particular, ele não abre mão de atender parte da população carente. Esse é o diferencial dele, seu velho é um homem no qual vale a pena se espelhar.

— Uau. – o que dizer depois dessa explanação romântica e um tanto utópica? Meu pai sempre fez o tipo super herói dos fracos e oprimidos, mas não sabia até que ponto isso era verdade. Um tanto orgulhosa do meu velho, sorrio num júbilo incontido. – Nenhuma boa ação fica impune. – acabo de citar Clara Boothe Luce, apontando para o céu tempestuoso.

— Exatamente. – ele me lança um meio sorriso. – Agora estou preso aqui após minha boa ação do dia.

Ficamos calados por tempo indeterminado. Volto a fitar o céu, com seu espetáculo pirotécnico a lançar raios prateados pela escuridão. Penso em algo para dizer e reinicio a conversa:

— Encontrei com o Guilherme.

— Ele me disse. – Joseph revela.

— Ele disse? – fico surpresa. – Pensei que a amizade tivesse terminado.

— Por algum tempo apenas. Mas acabamos nos entendendo, as mágoas foram esquecidas. De nada adianta ficar remoendo o passado. – sinto uma alfinetada nessa afirmativa.

— Legal pensar assim. – traço círculos invisíveis no chão, com a ponta do meu chinelo.

— Ele é um cara legal e ainda está solteiro.

O que Joseph está tentando dizer com isso? Perplexa e ofendida, lanço um olhar matador em sua direção. Ele recua quando nota que estou prestes a explodir.

— O que está fazendo? Tipo, dando uma de cupido, é isso? Eu e o Guilherme não temos nada a ver, aliás, nunca tivemos. O que aconteceu há dez anos não foi nada além de um lapso, um grande erro. Então por favor, nem pense em algo assim.

— Foi um erro? – ele questiona, com uma carinha de cão sem dono que me derrete por dentro. Mas continuo durona, cruzando os braços sobre o peito.

— Sim, um grande e gravíssimo erro. – concluo numa certeza que reverbera pela varanda quando o silêncio recai novamente.
                                                   ≈≈≈

Munidos de guarda-chuvas, subimos por degraus cimentados até o casebre mais a frente. Dormiremos os seis no único quarto disponível. O fato é estranho por si só. Não conheço esses canadenses e estou pouco a vontade com a situação. Para minha sorte não estou sozinha.

Jogamos vários colchonetes sobre o chão de lajotas vermelhas. Os gringos não estão nem aí com as péssimas condições e acabam caindo em qualquer lugar adormecendo quase que de imediato.

Pego minha mochila e vou para o único banheiro do casebre. Tomo uma ducha gelada, já que não temos eletricidade. Visto roupas limpas e por sorte lembrei de pegar minha necessaire com escova de dentes, pasta e fio dental. Vasculho a procura do pente e encontro junto com o meu desodorante.

Infelizmente, não há uma sala e a cozinha é pequena demais para um colchão. Nesse caso, desisto de encontrar qualquer saída para a situação na qual estou metida. Quando chego ao quarto noto que o único lugar vago é ao lado do Joseph. Ele ainda está acordado com o peitoral descoberto e as mãos atrás da cabeça. Fita o teto como se estivesse enxergando através da estrutura. Há uma vela acesa. Ela tremula com o ar úmido que entra pelas frestas da janela. Estou congelada no lugar, sem saber o que fazer. Se ele percebe minha intranquilidade não diz absolutamente nada.

Os canadenses já estão num sono profundo quando deixo minha mochila sobre uma cadeira. Tiro os chinelos e caminho sem fazer barulho até o colchão recostado na parede lateral.

Só então Joseph se dá conta da minha presença.

— Quando acordei essa manhã nunca poderia imaginar que o dia terminaria assim. – ele murmura.

— Sei o que quer dizer. – sussurro em resposta.

— A água do chuveiro está muito fria?

— Glacial.

— Ótimo, estou precisando. – ele se levanta em direção ao banheiro, lançando um último olhar na minha direção antes de sumir através do umbral.
                                            ≈≈≈

Os únicos dois lençóis disponíveis, cedemos para as gringas. Eu disse que o frio é psicológico e elas acabaram aceitando de bom grado. Psicológico uma ova! Estou tremendo por aqui e quando Joseph volta ao quarto me encolho no cantinho fechando bem os olhos. Estou vestindo uma regata branca e um short jeans por cima do biquíni. Sinto os pelos do corpo arrepiados. Não há cortinas na janela e a brisa gélida entra com tudo bem às minhas costas. Essa será uma noite longa e difícil, pelo visto. Escuto quando Joe apaga a chama da vela com um sopro. Ouço quando deita ao meu lado e se espalha. Nossos colchonetes estão separados por uma distância de apenas alguns centímetros.

— Sei que está fingindo.

— Não estou, apenas quero dormir. – respondo acima do retumbar de um trovão.

— Está com frio? – ele sussurra a pergunta.

— O que acha? – rebato, levemente irritada.

O barulho da chuva sobre o telhado é ensurdecedor. É como se milhões de pregos estivessem martelando na minha cabeça. E tem esse vento gelado que corta minhas costas me causando calafrios.
Sobressalto-me quando sinto seu braço se esticar sob meu pescoço. Os colchões agora estão unidos e quando dou por mim minha cabeça está aninhada em seu peito cheio de pelos e músculos bem trabalhados.

Agora ferrou de vez.

Minha mão esquerda resolve ter vida própria e contrariando todos os meus comandos mentais, se aconchega sobre aquele tórax de pele macia e cheirosa. Seguro a respiração por alguns segundos. Estou dura como uma pedra. Mas então ele quebra o gelo quando acaricia meus cabelos como fazia quando dormíamos juntos. Sim, dormimos várias vezes juntos. Como se eu fosse uma mulher-bala, sinto que acabo de ser atirada em direção ao passado. Flashes de memórias me vêm à mente num turbilhão desenfreado. Tenho que me conter, eu preciso ser forte!

— Ainda está com frio? – ele sussurra, ao pé do meu ouvido. Seu hálito quente deixa rastros em meu pescoço e acho que acabo de ofegar. Eu vou perder o controle estou sentindo.

— Não mais. – respondo e me seguro para não fazer uma bobagem.

— Durma bem, Demi.

— Você também. – balbucio e cerro bem as pálpebras, pedindo a Deus que eu apague nos próximos minutos.

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