quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Capítulo 20 (MARATONA 4/5)


Apenas de biquíni e descalça, caminho sobre o gelo sendo açoitada por uma nevasca cruel. Sinto arrepios e meus ossos parecem feitos de gelo. Mas então para meu total assombro eis que surge um urso polar nessa cena. Ok, se há um urso estou no Pólo Norte. E se estou no Pólo Norte de biquíni, é óbvio que estou sonhando. O urso é imenso e aqueles pelos parecem ser macios. E quentes. Domino meu ímpeto em sair correndo e gritando, aguardando seu próximo passo. Acho que o urso quer avançar sobre mim e me devorar.

Ele se ergue sobre as patas traseiras e acabo de dar dois passos para trás. Aqueles olhos grandes e esverdeados – ursos têm olhos verdes? – se fixam nos meus e aparentemente não pretende fazer mal algum. Ele solta um rugido alto, rouco e extremamente selvagem. Não estou temerosa, pelo contrário. Aproximo-me lentamente e minha mão direita se eleva, tocando aqueles pelos em brasa. As patas dianteiras me agarram num abraço apertado e me sinto asfixiar. O calor daquele animal me transmite segurança e agora estou em chamas. Mas então, sinto lábios em minha testa e acho que o urso acaba de me beijar a fronte.

Lábios? Beijo de um urso polar?

Abro os olhos e me sobressalto, totalmente surtada. Vasculho ao meu redor buscando entender onde estou. Não vejo os turistas em lugar algum, mas Joseph está ali me encarando com aqueles olhos verdes profundos e um tanto avermelhados.

— Onde eles estão? – ainda penso se o beijo na testa foi realmente desferido por um urso, mas enfim...

— Já foram para o restaurante. – ele revela e desvio meu olhar do seu peitoral despido.

— Por que não me acordou? – interpelo.

— Não tive coragem.

Giro a cabeça e meu pescoço faz cléck. Levo a mão à jugular e solto um palavrão. Torcicolo é a última coisa de que preciso hoje.

— Droga. – resmungo. – Devo ter ficado na mesma posição a noite toda.

— Realmente, você não se mexeu nem um milímetro. – ele ergue o tronco e alonga os braços no alto da cabeça. Isso é jogo sujo.

— Como sabe disso? – questiono, olhando para a janela. Não ouço barulho de chuva, mas também não vejo traços do sol.

— Não preguei os olhos.

— Por que não? – uno as sobrancelhas, curiosa.

— Estávamos com desconhecidos, preferi não dormir.

— Para proteger a mim ou a você? – tombo a cabeça sobre o ombro e a dor muscular deixa meus olhos marejados.

— Não acho que eles sejam gays… – e a frase fica solta no ar. – Deixe-me dar uma olhada nisso aí.

E lá vem ele com aquelas mãos grandes e quentes. Tico e Teco ainda não despertaram, portanto preciso de algum tempo para entender aquela deixa. Ah, mas como sou idiota! Ele não dormiu para me proteger de possíveis gatunos.

Hum, isso começa a ficar interessante.

Joseph segura meu ombro e deita minha cabeça na lateral. Dói um bocado quando ele alonga. Em outras épocas teria xingado todos os seus antepassados e as gerações futuras. Por incrível que pareça, estou sob controle.

— Tome um relaxante muscular. – ele aconselha. – Tem uma caixa na minha maleta.

— Certo. – meus olhos se atiram sobre ele como dois leões famintos. Joe me devolve um olhar ávido e a conexão entre nós está feita.

Existem momentos na vida em que o mundo fica em suspenso e o tempo-espaço desaparece. É como se fossemos transportados para outra dimensão, um lugar onde não há medo ou dúvidas. Acabo de entrar por esse portal do além e não quero, em nenhuma hipótese, sair do transe. Mas Joseph deve ter caído em si e baixa o olhar, rompendo o vínculo. Um sentimento horrível me invade e tenho vontade de chorar. Não o faço. Levanto-me num salto e, um tanto dolorida, calço meus chinelos, pego a mochila e sem dizer palavra, me mando o mais rápido possível daquele quarto.
                                               ≈≈≈

Passei um rádio para a pousada assim que coloquei os pés no restaurante e tomei o tal relaxante muscular. Apesar de sonolento, meu avô pegou no tranco e solicitou que eu pagasse pela estadia e as refeições. Mercedes não queria aceitar de jeito nenhum, mas sei ser convincente, afinal, vendo até merda caso haja necessidade. Bem, se eu puxar pela memória as inúmeras campanhas publicitárias que criei, comprovo que já vendi coisas piores do que merda.

Joseph boceja a cada cinco segundos. Seus olhos estão inchados, avermelhados, pequeninos. Ele não está bem para conduzir nem a si mesmo, é capaz de dormir ao volante no trajeto.

— Acho que o Joseph não está em condições de navegar. – quem fala o óbvio é Guigo. – Ainda tem habilitação, Demetria?

— Tenho. Mas e os gringos?

— Deixe comigo, arranho bem no inglês.

Com essa afirmação, aproximo-me de Joseph na certeza de que ele negará auxílio. Pigarreio e ele me encara com as pálpebras pesadas.

— Meu arrais amador está em dia Joe. Qual o tamanho do barco?

— É uma lancha de 18 pés. – ele elucida, não sem antes bocejar na minha cara. – Vai mesmo fazer o que estou pensando?

— Está nesse estado por culpa minha, então, me dê as chaves. – estendo a mão e Joseph checa os bolsos, estendendo o molho a seguir sem qualquer discussão.
                                                    ≈≈≈

A lancha é uma graça, com o logotipo do hospital no casco. O cockpit é pequeno, mas já pilotei embarcações menores do que essa. Procuro no GPS a localização anterior e traço a rota para a Marina 188.

Joseph está jogado no sofá de dois lugares, com as pernas para fora. Leva o antebraço na altura dos olhos e antes mesmo que eu tente engatar uma conversa, ele já está dormindo.

A volta para Paraty é tranquila, apesar do mar agitado e das nuvens acinzentadas que recobrem o céu. Lanço olhares para ele de tempos em tempos e meu coração se espreme dentro do peito.

Começo a conjecturar com meus botões.

Minha paixão por Joseph não tem data. Apesar do cara não fazer o meu tipo – pelo menos não fazia até ficar gostoso ao extremo – desde criança, tinha uma convicção absoluta de que nos casaríamos e ele seria o meu príncipe encantado. Enquanto as meninas surtavam por ídolos das novelas, da música ou da revista Capricho, eu sabia que tinha o cara perfeito à minha mão. Mas como nem tudo são flores – ainda bem, já que sou alérgica – , quando minha mãe me deixou rumo à iluminação espiritual, algo mudou dentro de mim e todas as certezas se esvaíram, como água escoando pelo ralo. Tive altos momentos depressivos e porque não dizer, depreciativos. Meu ego, vestido de ninja, dizia que eu não merecia ser amada, afinal, nem minha mãe havia me suportado. Eu sei, uma tremenda paranoia dramática! Mas era assim que eu me sentia na época e vou além: ainda me sinto assim nos dias de hoje.

Quando Joseph chegou com aquela aliança e um pedido de namoro, achei que não era merecedora daquele amor. O momento trash com Guilherme foi apenas para comprovar isso a mim mesma. Odeio fazer autoanálise, mas nesse instante me sinto curada, como se tivesse descoberto a real causa de uma doença terminal. Tenho que parar de culpar minha mãe por meus infortúnios e começar a assumir a minha vida de uma vez por todas
.



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