quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Capítulo 21 ( FINAL MARATONA)


As cordas acabam de ser atreladas ao Píer. Joseph está num sono profundo quando faço menção em acordá-lo. Minhas mãos se detém no ar, duvidosas. Ajoelho-me ao seu lado, decorando cada linha do seu rosto, doida para sentir aquela barba por fazer em contato com a minha pele. Seus cabelos dourados e encaracolados são tão macios que pedem para serem tocados. Novamente detenho minhas mãos teimosas. Aqueles lábios parecem pulsar, chamando-me. Quando percebo, estou próxima demais. Tanto é verdade que estou respirando a inspiração dele.

Joseph se remexe e eu recuo, caindo de bunda no chão da embarcação. Ele desperta no susto. Seus olhos esverdeados se atiram para dentro dos meus azulados, como se fosse uma âncora. Sinto me queimar.

— Chegamos? – ele limpa a garganta e lança a pergunta.

— Acabamos de aportar.

Deus, ele é absolutamente lindo quando está dopado de sono. Espreguiça-se demoradamente e acho que chego a babar. Joseph se levanta e me estende a mão já que ainda estou com a bunda bem colada ao chão.

— Obrigado por nos trazer a salvo. – ele diz piscando duro de cansaço.

— Estamos quites. – nesse ponto jogo minha mochila sobre as costas.

Desembarcamos e lá estão os canadenses à minha espera. Despedimos-nos de Guigo e Michele e seguimos para o estacionamento. Coitadinho do Lúcifer, está praticamente sozinho no pátio com exceção de outros três carros.

Joseph troca algumas palavras com os gringos e quando faço menção em me dirigir ao Jeep, ele toma meu braço com suavidade. Os quatro turistas percebem o clima de imediato e pegam as chaves da minha mão, despedindo-se do médico gostoso que me causa loucas sensações vertiginosas. Quando estamos a sós Joseph ensaia o que dizer, mas parece desistir. Para tirá-lo dessa situação incômoda, levo as mãos aos bolsos do short e balanço o corpo para a frente e para trás, dizendo:

— Obrigada por ter me protegido essa noite.

— Obrigado por não ter explodido a lancha. – ele agradece, um tanto tímido, e esse embaraço é tão sexy!

Já dando por encerrada a despedida, eis que sua mão grande surge em cena, ajeitando alguns fios rebeldes atrás da minha orelha. Estremeço e suspendo a respiração, na expectativa. Ele volta a me encarar daquele jeito, a me cercar por todos os lados. Dou um passo à frente hipnotizada. Noto que está ansioso, levemente ofegante, totalmente preso a esse momento só nosso. Mas então, para minha total decepção ele baixa os olhos e parece retomar o controle sobre si.

— Tenha um bom dia, Demetria.

Xingo mentalmente, mas retribuo com um sorriso desapontado:

— Você também, Joseph.

                                             ≈≈≈

O dia transcorreu tranquilo e após o tour pela cidade histórica, na companhia dos gringos, voltei para a pousada doida por um banho e um livro. Mas quem disse que consigo me concentrar nessas letrinhas? Estou inquieta e uma ansiedade maluca consome minhas entranhas. Parece algo vivo, que se remexe angustiado dentro do meu estômago. Deixo o romance de lado e saio para a varanda da casa do meu velho. Já é noite e não há nem sinal da lua. Pelos raios que riscam o céu tem mais chuva chegando por aí.
Estou com energia de sobra e preciso gastá-la em algum lugar. Talvez uns socos, chutes, uma corridinha pela manhã. Mas então, uma brilhante ideia pisca em meu cérebro fervilhante. Sei exatamente o que fazer para sair dessa vibe.

Amanhã cedo, vou surfar.
                                             ≈≈≈

O dia amanhece cinzento. Está mais frio que de costume, portanto, visto um macacão de neoprene – velho, mas que ainda serve – por cima do biquíni. Nada me fará desistir de uma ida à praia para gastar essa energia que se concentra no meu plexo solar.

Lúcifer demora a pegar. Na terceira partida, finalmente o motor colabora. Tomo a estrada vicinal em direção a Praia do Cepilho, em Trindade. Ligo o rádio e busco a faixa preferida pelos surfistas da região. De acordo com o radialista, as ondas não estão das maiores, mas dá para brincar. São seis da manhã, um excelente horário para a prática do surf. Desde pequena pego ondas, mas estou fora de forma. Nada que alguns caldos não resolvam, aliás, meu “bronzeado escritório” já deu uma boa melhorada.
Estaciono Lúcifer e dou uma sacada na maré. O vento está ótimo e as ondas bem formadas. Inspiro aquela brisa úmida e me sinto em paz, como se o nó ansioso em meu estômago começasse a se dissolver.
Com a prancha debaixo do braço e a mochila às costas, afundo os pés na areia. Meus cabelos dourados esvoaçam, revoltos. Apesar do dia estar nublado, ajeito os óculos de sol sobre os olhos, protegendo-os do vento arenoso que se levanta do chão. Finco a prancha na areia e prendo as madeixas num rabo de cavalo improvisado. Jogo a mochila no chão e prendo o velcro em torno do calcanhar. Quando ergo o tronco para escolher um bom lugar para surfar, congelo no lugar, atônita.
O destino deve estar de sacanagem comigo, na maior zoação. Meus olhos vasculham os caracóis da cor do sol, descendo por aquelas costas esculpidas por Deus, em toda sua glória e inspiração. Respiro. Agora percorro aquelas nádegas firmes, envoltas por um tecido de neoprene. Detenho-me ali por mais tempo do que deveria. E então, baixo o olhar para aquelas pernas bem torneadas, com pelos dourados em toda a sua extensão.

O que ele está fazendo aqui a essa hora da matina?

Num contato telepático surpreendente, Joseph gira a cabeça para trás e seu olhar recai justamente sobre mim. Fico um tanto admirada com essa conexão, como se de alguma forma ele me sentisse por perto. É realmente assustador. Seu semblante sustenta a mesma perplexidade que o meu. Nós sempre surfamos juntos, mas pensei que os tempos de vida mansa haviam terminado. Pelo visto, me enganei.

O que fazer nessa situação?

Não há para onde correr, já que Joseph e sua prancha se aproximam a passos largos. O vento acaricia seus cabelos e, por um segundo, queria colocar meus dedos ali, como fazia quando ele deitava a cabeça em meu colo nos fins de tarde. Cara, o que eu tinha na cachola para estragar algo assim?

— Pensei que não surfasse mais. – ele começa.

— Faz algum tempo, mas é como andar de bike. – afirmo.

— Hoje o mar está agitado. Acha uma boa ideia?

— Quanto mais apavorante melhor. – digo decidida.

Uma sombra obscurece seus olhos esverdeados. Ele sustenta a face da apreensão. Sempre fui maluca, qual a novidade?

— Você quem sabe. – Joseph cerra as pálpebras e sacode os cachos. – Não se arrisque desnecessariamente.

— Está com medo por mim? – questiono, descrente.

— Só estou pedindo que tenha cuidado, Demetria. – dito isso, ele me dá as costas e segue em direção ao mar.

Os surfistas mais doidos estão na ponta da praia, onde as ondas são maiores e bem perigosas. Contento-me com um pouco mais de segurança e entro na água gelada. Dou braçadas longas, passando a arrebentação com mais dificuldades do que pressupunha. O vento sopra feroz e uma garoa fina começa a cair. Não vou desistir antes de surfar pelo menos duas ondas.

Encontro um bom lugar e aguardo. Joseph está a poucos metros de distância e parece pensativo. Deixa passar uma boa oportunidade e eu nem cogitei a onda, já que ele chegou primeiro.Vem uma excelente formação por aí. A onda é um tanto disforme, mas está bacana. Dou uma olhada para Joe e como ele não está remando, irei eu. Ah, que sensação incrível! Não foi uma onda alta, mas deu para executar algumas manobras básicas. Já estou nadando de volta e passo pela arrebentação mais uma vez.

Através de mímica, pergunto a Joseph o porquê de não ter pego a onda. Ele dá de ombros e volta para seus pensamentos. Não vou ficar aqui especulando seus motivos, só quero curtir e relaxar, nada mais. A chuva aperta e o vento aumenta a velocidade. As águas se revoltam de imediato, como se respondessem a um comando divino. Uma onda começa a se formar ao longe e parece ser perfeita. Joseph não se move. Nesse caso, a onda é minha. Dou braçadas vigorosas e quando olho para trás, o paredão de água é gigantesco. Penso em desistir, mas não o faço.

Estou na crista da onda.

Deslizo até a base, cortando a muralha de água com a mão esquerda. Que tremenda sorte, que onda animal! Ah Deus, valeu mesmo, vai rolar um tubo! Uhuuuuuuuuuu.

Estou dentro do tubo e me sinto poderosa, como se nada fosse impossível. Essa mistura de medo e aventura é indescritível. A adrenalina corre rápido por minhas veias e me sinto em êxtase. Mas, como eu disse, não estou em minha melhor forma e até os mais experientes surfistas cometem erros. E eu erro feio. Sou abocanhada por aquele paredão, perdendo a noção. Não sei mais onde está o céu ou a terra. Engulo muita água e a escuridão é total. Sinto a corda da prancha puxando o meu tornozelo e começo a brigar com o mar. Preciso emergir, preciso de ar! Sinto uma corrente gélida e peço aos céus que não tenha sido tragada por ela. Quando noto que o velcro da corda que me prendia a prancha se solta, entro em pânico. Outro grande erro. Se eu não subir nos próximos segundos, adeus mundo cruel. 
Eu não subo e acabo de perder a consciência.

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