quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

Capítulo 8



Com o par de sapatilhas mais confortável que tenho, dou o primeiro passo a caminho do Centro Histórico.
O sol está a pino e os raios queimam meus braços como se eu fosse uma vampira prestes a virar cinzas. É exatamente como me sinto, só o pó. Arrasto os pés a esmo, descortinando os mínimos detalhes de uma Paraty que parece ter estacado no tempo, suspensa sobre um mundo de tecnologias e entretenimentos baratos e sem sentido. As pessoas aqui são mais felizes, basta observar os sorrisos e o brilho no olhar. Estou com inveja dessa alegria, da aura colorida que os envolve. Será que algum dia redescobrirei a felicidade?
Dizem que o tempo cura tudo, mas no meu caso o relógio está parado, aguardando uma peça sobressalente que nunca chega.
Eu sei, sou a rainha do drama.
— Ei, Demetria! – ouço o chamado às minhas costas.

— Oi, Espírito. – lanço meu melhor sorriso matinal. – Ou deveria chamá-lo de Muchacho?
Sobre a cabeça de cabelos ralos e descoloridos, Espírito sustenta um chapelão, ao estilo sombrero mexicano. Para variar, seu corpo está todo coberto, inclusive as mãos se mantém enluvadas.
— Sua avó me descolou esse chapéu numa viagem que fez para o México, está lembrada?

— Se estou. Comi pirulitos de pimenta por quase um ano. – a boca está salivando, irritada com a lembrança. Meu estômago também se remexe como se gritasse “Não, pelo amor de Deus!”

— E olhe só isso. – ele puxa da aba do sombrero uma rede feita de crochê. – Sua avó tricotou esse troço, dizendo que protegeria o meu rosto também.

— Fala sério, isso parece um sombrero-burca! – satirizo. – Escute, não seria melhor o velho e simples protetor solar?

— O negócio vira uma meleca derretida quando encaro o fogão. Prefiro o sombrero-burca. – ele rebate, guardando a tela de crochê dentro da aba. – Para onde está indo?

— Caminhando, sem rumo definido.

— Isso é um pleonasmo! – Espírito desata a rir.

— Qual é, já tive alguns rumos definidos. – retruco, tentando parecer indignada.

— Quando? – ele une as sobrancelhas e me encara.

— Quando fui para São Paulo, por exemplo.

— Hum. Mas pelo visto o rumo definido estava equivocado, ou você não teria voltado para casa. – ele faz uma pausa enquanto meu ego dá uma de Chuck Norris e mete umas porradas nas minhas ideias. – O que aconteceu por lá?

— Quer mesmo saber? Está com tempo de sobra?

— Me acompanhe até o mercado? Preciso buscar uns pescados e tal.

— Beleza. Prepare seus ouvidos e deixe a descarga no jeito porque são muitas merdas. E quando eu digo muitas, é de entupir o encanamento.

— Ok, sou todo vaso sanitário, ops, ouvidos.
                                            
                                           ≈≈≈

Contei todas as minhas desventuras para Espírito que me ouviu atentamente, como sempre faz. Vez ou outra ele murmurou algo ininteligível, pensando com seus botões.

— Pronto, satisfeito? – digo, torcendo o nariz na banca de peixes. O aroma aqui é de sair correndo e gritando, como aquele molequinho do filme Esqueceram de Mim ao aplicar o pós-barba no rosto.

— Caramba, Demi. Quando você disse que eram muitas merdas, não imaginei que fosse o esgoto inteiro. – ele ironiza, metendo o nariz em um dos peixes, inspirando-o como se fosse perfume francês.

— Eca! – faço careta e recuo. – Por que fez isso?

— Para me certificar de que é fresco, sua nojenta.

Suspiro alto e relaxo os ombros, vencida. Quanto mais conto a minha história para os outros, mais me sinto uma perdedora.

— Meu pai fez um convite para eu trabalhar no hospital. – revelo quando retomamos o caminho para a pousada. – O que acha?

— É uma boa. Sabe quem está trabalhando por lá, não sabe?

— Quem? – tomo a frente de Espírito e o encaro, bem no fundo daqueles olhos claríssimos.

— Droga, ninguém contou a você? – ele parece surpreso e a lombriga da curiosidade resolve me morder. – Talvez seja melhor descobrir sozinha.

— Faça isso e eu o prendo a uma árvore, completamente nu, ao meio-dia. – uso meu melhor tom de ameaça. – Quem está trabalhando no hospital? – faço cócegas em sua barriga, esse golpe sempre funciona.

— Pare. – ele se contorce e eu não dou trégua. – Está bem, está bem! É o Joseph!
Petrifico, boquiaberta.
Joseph? Aquele Joseph? Não é possível, a última notícia que tive dele foi a de que estava em Londres e não havia qualquer possibilidade de voltar ao Brasil. Não, não deve ser a mesma pessoa.
— Quatro olhos, franzino, cara de cão sem dono… está falando desse Joseph? – indago, prendendo a respiração para ouvir a resposta.

— Ele não usa mais óculos, está com o corpo malhado, cara de bad boy angelical… é desse Joseph que estou falando. – ele faz uma pausa e degusta o meu momento pavor. – Ele mudou muito, Demi.
Perco a voz. Milhões de perguntas se formam em minha boca, mas nenhuma delas escapa pelos meus lábios tensos. Levo a mão ao peito quando sinto que terei um ataque a qualquer segundo.

— E tem mais uma coisa que precisa saber: ele está noivo. – Espírito lança a bomba e eu engasgo com o ar.

What???? Como assim noivo?

— Quem é a piranha? – meu lado sombra rouba a cena. – Alguém que eu conheça e deva matar?

— Pior do que isso. O nome Samantha Bragança lhe diz alguma coisa? – ele atira e eu explodo:

— Aquela patricinha mimada e metida a besta? Aquela enjoada, patética, chorona e… — Linda. – Espírito complementa, tocando meus ombros.

— É, isso também. – minha cabeça pende para a frente, derrotada. – A linda, rica e inteligente Samantha Bragança. Há quanto tempo estão noivos?

— Alguns meses. O Joe voltou ao Brasil há dois anos e desde então, trabalha com o seu pai. Seu velho não disse nada a respeito? – o chapéu faz sombra no rosto de Espírito e não consigo acompanhar suas reações.

— Não, ele não disse. – minha voz é um sopro de pesar.

— O primeiro amor da sua vida e sua arqui-inimiga juntos… é muito para processar, Demetria.

Sinto um gosto horrível no fundo da garganta. Estranhas emoções me abatem como se eu fosse uma presa ferida. Deve ser o meu tão conhecido sentimento de posse, não há outra explicação para as sensações conflitantes que estou vivenciando. Estava tão ocupada me autodestruindo que nunca pensei em Joseph com outra mulher. A ideia é tão absurda, tão sem sentido, que não consigo processar o fato.

— Não se faça de vítima, você o abandonou e não o contrário. Ele ficou arrasado quando foi para São Paulo, sem se despedir de ninguém. Por que acha que se mudou do Brasil na primeira oportunidade? – meneio a cabeça, apertando os olhos. – Ele estava tentando superar, reencontrar a sanidade. Aquele foi um golpe duro e eu acompanhei o desenrolar dessa trama bem de perto, Demi.

— Não faça eu me sentir pior do que já estou. – peço, com lágrimas nos olhos.

— Você o apagou da sua vida, como fez com a sua mãe. Abandonou um cara incrível, que tinha tudo para fazê-la a mulher mais feliz desse mundo. – ele faz uma pausa e segura meus ombros, com firmeza. – Você quase o destruiu, espero que se lembre bem disso quando reencontrá-lo.







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