terça-feira, 24 de novembro de 2015

Capítulo 4


São três da tarde.
Antes de seguir para Paraty, resolvo fazer um desvio de última 
hora. Giro o volante de Lúcifer e pego a péssima estradinha que me levará até Trindade, um dos meus lugares preferidos no mundo.
O Jeep Troller vermelho adere bem ao terreno, ainda assim, sou jogada para cima e para baixo no banco conforme desço a estrada esburacada a caminho da praia. Abro a janela e desligo o ar condicionado. Respiro fundo e o aroma de maresia me remete a tempos passados, num saudosismo intermitente.

O peito se enche novamente e fecho os olhos por dois segundos, talvez menos. Sinto-me abraçada pela atmosfera, pela natureza que me rodeia. Como é bom estar em casa.Paro Lúcifer sob as areias da praia. Recosto a cabeça e mordo o lábio para segurar o riso, enquanto rememoro uma das cenas mais hilárias que já protagonizei: meu primeiro beijo.

Foi nessa praia, num luau desses que deveriam constar dos livros de história da cidade. O beijo foi estranho, úmido e engraçado. Eu tinha quatorze anos e o garoto quinze. Nenhum de nós tinha beijado antes e é bem provável que, por esse motivo, as coisas não tenham saído como deveriam. Ou porventura, a culpa tenha sido minha.
Eu estava dando uma de difícil, mas na verdade estava louca para beijá-lo. Ele tinha aquela cara de nerd, usava óculos de grau ao estilo John Lennon e sua timidez me deixava mais a fim ainda.
Enquanto a galera se matava de dançar na pista improvisada sobre a areia, ele tomou uma das minhas mãos, numa confiança que eu nunca tinha notado antes. Sob a luz do luar e da iluminação bruxuleante dos candelabros, ele me puxou para a beira do mar, bem longe dos olhares curiosos.
Confesso que estava tensa. Eu já tinha anos de treinamento básico com o dorso da mão. Mas ele não era a minha mão, afinal, tinha lábios e uma língua. Só de pensar nisso, senti um frio congelante na espinha.Ele era uns dez centímetros mais alto do que eu. Comecei a divagar sobre as possibilidades: ele se abaixaria na minha direção ou eu deveria ficar na ponta dos pés? Não sei porque pensava sobre isso, mas na época me pareceu importante.Descalça, senti a água morna se aconchegar. Observava um navio lá no horizonte, as cabines ainda acesas. Meus cabelos esvoaçavam com a leve brisa e o cheiro do mar me entorpecia.

Ele tomaria a iniciativa ou eu deveria agarrá-lo? Remoí aquela dúvida por pouco tempo. Suas mãos rasgaram o ar e tomaram meu rosto em chamas. Seu olhar era fixo, tão profundo que não consegui me segurar. Eu desatei a rir, desenfreadamente.
Acho que o constrangi, não sei dizer. Ele mordeu o lábio e ficou me encarando, com uma baita interrogação no semblante. Eu juro que tentei, mas a risada nervosa me dominou, sem parada. Se fosse qualquer outro cara, teria virado as costas e se mandado. Bem, ele até fez isso mais tarde e eu entendo perfeitamente.Descontrolada, afundei meu rosto em seu peito franzino. Seus dedos se enroscaram em meus cabelos e acho que ele bufou, talvez inconformado com minha atitude. O riso estava frouxo, ainda assim, contive o acesso por tempo o bastante para ouvir o que ele disse a seguir:

— Demi, você está me zoando? Tirando uma com a minha cara?

— Não! É claro que não. – estava envergonhada demais para mirar seus olhos esverdeados. – Escute, vamos tentar novamente?

— Acabou o clima, Demetria.

— Por favor? – e então, fiz uso da mais poderosa arma feminina: a sedução.

Na ponta dos pés, comecei a beijar o seu ombro, até chegar ao pescoço. Ele tombou a cabeça de lado e acho que arfou. Seus dedos, ainda enroscados em meus cabelos, escorregaram para as minhas costas. Senti seus lábios em minha testa, têmpora, bochecha e então, colaram-se em minha boca.

Uau!

O toque era macio, úmido, até gostoso. Sentia choques elétricos por toda a extensão da pele e havia uma conexão entre nós, algo surreal. Eu não sabia o que fazer com a droga da minha língua, portanto, ela permaneceu dentro da boca. Mas então, algo muito esquisito aconteceu. A língua dele entreabriu meus lábios e ele entrou, sem pedir licença.

Puta merda, aí foi demais.

Um novo acesso de riso se instalou e dessa vez, não teria volta. Ele jogou as mãos para o céu, entregando os pontos. Pelo visto, eu não iria colaborar. Até tentei dissuadi-lo, dizendo entre engasgos que eu iria me controlar. Ele não acreditou, virou as costas e me deixou ali, rachando de tanto rir.
Apesar dos pesares, foi muito legal, uma lembrança que realmente vale a pena guardar. Para falar a verdade, estou sentindo um aperto no peito nesse exato segundo. Essa memória sempre vêm carregada de fortes emoções.
Saio do carro e o vestido floral esvoaça com a brisa. Meus cabelos dourados, na altura do queixo, também se espalham, livres como o vento. Inspiro e expiro por várias vezes, chegando a ficar zonza. Abro os braços e dou um grito: “Cheguei!”. Sempre faço isso e na maioria das vezes alguém grita de volta: “E daí?”.
Bando de estraga prazeres.

Ouço a voz de Nauane gritando dentro de Lúcifer. Ela fez essa gravação há séculos e sempre que escuto, acabo rindo sozinha. A musiquinha que ela compôs é assim:

“Demetria, atende logo essa bagaça por que sou eu. Alô, Demetria, me atende logo. Atende logo esse celular, Demetriaaaaaaaaaa!”

— Oi, Nanie.

— E aí, Demi? Chegou?

— Ainda não. Adivinhe onde estou.

— Se eu bem conheço você, deve ter feito um desvio básico a caminho de Trindade, acertei? E como você é um tanto óbvia, sei que deve estar sentada sobre o capô de Lúcifer, contemplando o mar azul e relembrando os melhores momentos da sua vida, dentre eles, seu primeiro beijo para lá de cômico.

— Poxa, você deveria ganhar dinheiro com isso. – sorrio sobre o capô do Jeep, um tanto decepcionada por ser tão óbvia. – Fui parada por um policial no caminho, mas ele era gente boa e batemos um papo interessante.

— Foi multada? Se foi, prepare-se. Chegou uma multa hoje cedo para você por excesso de velocidade na Marginal Pinheiros. Com essa, acaba de estourar os pontos da carteira de motorista.

— Nem isso vai tirar meu bom humor no momento. – dou um soco em Lúcifer, só para aliviar a pressão. – Como estão as coisas por aí?

— Vou sentir a sua falta. A casa está tão vazia sem as suas caixas de sapatos…Dou uma gargalhada, engasgando. Nanie também ri do outro lado da linha, mas sei que está sofrendo com a minha mudança. Ela tinha sugerido umas férias, mas acabei optando por voltar a morar com o meu pai e ajudar meus avós a tocarem a pousada. Aliás, o sonho deles é que eu aprenda os macetes do negócio para herdar o hotel quando eles se forem. Gosto da ideia, não é de toda má.

— Não acredito que estamos conversando pelo celular. Esse troço nunca dá sinal por aqui. – digo, estreitando os olhos para observar Melhor o horizonte.

— Estamos no Brasil, esse troço nunca dá sinal em lugar algum. Erga as mãos para o céu, você está vivendo um milagre dos grandes. – Nanie faz uma pausa curta. –Demi, se precisar de qualquer coisa me ligue, está bem?

— Pode deixar. E, Nanie, peça suas férias vencidas naquela agência do capeta. Não aceite nada menos do que trinta dias, vamos nos divertir muito por aqui.

— Será a primeira coisa que farei na segunda-feira. Promete se cuidar?

— Prometo. E pique essa multa em mil pedaços e depois queime, talvez os pontos na carteira sumam por magia.

— Pode deixar.
                                                  ≈≈≈

Dois quilômetros para a entrada de Paraty.

Essa é uma cidade colonial, preservada pelo Patrimônio Histórico Nacional devido ao conjunto arquitetônico de suas construções. Sempre que entro no Centro Histórico, sinto-me automaticamente levada a outras épocas, onde andar de salto alto era impraticável devido às pedras pés-de-moleque do calçamento. Bem, andar de salto continua sendo impossível para mortais desastradas como eu. Por sorte, tenho inúmeros sapa tênis, sapatilhas e tênis confortáveis.

Paraty foi fundada em 1667 e teve grande influência econômica no Brasil, devido aos engenhos de cana-de-açúcar. A pinga produzida na região é incomparável até os dias de hoje. Adoro uma boa caipirinha com camarões à beira mar. O que dizer? Gosto das boas coisas da vida.

A cidade é cercada pela Mata Atlântica e tornou-se, com o passar dos anos, um polo de turismo nacional e internacional. Nasci aqui há vinte e oito anos e sei por que deixei tudo para trás. Além da máster burrada que fiz há dez anos, minha mãe também contribuiu para essa decisão tresloucada, mas não estou a fim de falar sobre isso agora.

A pousada dos meus avós situa-se no Centro Histórico e lá não é permitido o tráfego de automóveis. Por esse motivo, faço um desvio e sigo por uma rua lateral ao centro. Embico Lúcifer no estacionamento que fica na parte de trás do estabelecimento e desço do carro, abrindo a portinhola de madeira.

Não avisei ninguém sobre a minha mudança. Gosto de entradas triunfais e inesperadas. Só espero que minha avó não tenha um ataque do coração. Ela é do tipo emotiva e fica extremamente irritada quando não aviso que estou chegando. Coisas de gente mais velha.

Desligo o motor e preciso de algum tempo para me localizar. Faz dois anos desde que vim pela última vez e só passei o final de semana. Estranhamente, parece fazer mais tempo. Estive tão comprometida com o meu trabalho e os meus relacionamentos destrutivos que, sei lá, acabei deixando minha vida familiar de lado. Estou me sentindo culpada, é isso.Com um friozinho esquisito na barriga, aprumo-me em direção à recepção do hotel. As palavras do policial Pacheco de repente ecoam em minha mente, como um presságio: “Encare sua chegada em Paraty como um recomeço, uma nova chance.”

Ok, Pacheco, você tem toda a razão. Farei desse o primeiro dia do resto da minha vida.
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Oi meninas estou muito feliz por voces estarem gostando da fic nova; terças,quintas e sabado as 13:00 vou postar um capitulo e um bônus no domingo, ok? Beijos.

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