quinta-feira, 26 de novembro de 2015

Capítulo 5


Minha avó, com seus cabelos que mais se parecem navalhas de tanto laquê, não para de me beijar, apertar, beliscar. Ela chora e ri ao mesmo tempo. E também vocifera:

— Por que não ligou? Eu teria arrumado o seu quarto, feito bolo de cenoura e comprado aqueles camarões graúdos que você tanto gosta. Odeio quando chega sem avisar.

Não disse que a vovó é doida?

Meu avô se limita a um abraço longo, daqueles que não necessitam de palavras. Ele é o tipo de pessoa que dá vontade de apertar as bochechas só por existir. Emana uma calma tão sublime que, ao seu lado, sinto-me flutuar.

— Avisou ao seu pai que viria? – vovô vinca a testa.

— Não.

— Demetria, o que houve? – ele deve possuir algum poder do além, sempre sabe quando estou em apuros.

— Podemos falar sobre isso mais tarde, vô? Não almocei e estou varada de fome.

— Como assim não almoçou? – estridente, vovó sacode meus ombros. – Demetria, já são quase cinco da tarde, não pode ficar tantas horas sem comer. Venha, vou preparar algo para você.
                                          ≈≈≈

A Pousada das Margaridas é um hotelzinho bucólico e acolhedor. Foi fundada em 1970 e a decoração mudou muito pouco desde então. Apesar disso, não é um local com cara de velharia. Está mais para um estilo vintage: rústico, chique e atual.As trinta suítes são disputadas a tapas nos períodos de alta temporada. Muitos nomes de peso já passaram por aqui, inclusive estrangeiros. E eles sempre voltam, o magnetismo desse lugar é latente.

A construção, em estilo colonial, foi totalmente restaurada assim que meu avô colocou as mãos na escritura do imóvel. Poucas foram as alterações na estrutura original e meu pai conta que uma pequena fortuna foi investida para que a Pousada das Margaridas se tornasse um dos pontos turísticos de Paraty.Um dos lugares que mais gosto é o pátio central, ladeado por jardins de margaridas, duas piscinas e um gazebo incrível, coberto por copas de árvores centenárias. É nesse pedaço de paraíso onde é servido o Melhor café-da-manhã ao estilo colonial do estado do Rio de Janeiro.
Ainda no complexo do hotel funciona um restaurante típico, comandado pelo Chef Espírito, um amigo de longa data. O apelido surgiu quando ainda éramos crianças e tem um motivo de ser: Espírito é albino e a alcunha pegou tão logo a inventei. Marcos Paulo é o nome dele, mas acho que nem mesmo a mãe do Espírito se lembra do seu nome de batismo.

Na parte de trás da pousada, seguindo pelo estacionamento, dois sobrados foram erguidos: a casa dos meus avós e a casa do meu pai, uma ao lado da outra. O que as separa é um suntuoso jardim de flores multicoloridas, circundado por um aroma que me remete a infância de imediato. É bem no centro desse jardim que estou agora, embalando-me para frente e para trás, num balanço de madeira construído pelo meu avô assim que dei os primeiros passos. A corrente range baixinho e sinto cheiro de verniz novo no ar.Jogo a cabeça para trás e fecho os olhos, capturando os sons dos pássaros e inebriando-me com o odor que se desprende das flores ao redor. Os pés se arrastam no cascalho branco enquanto meus cabelos vêm e vão pelo rosto, acompanhando o movimento do corpo.

— Demetria, algo me diz que você veio para ficar. – a voz do meu avô chega mansa e rouca aos ouvidos. – E não estou dizendo isso só pelos milhões de sapatos que lotam o seu carro. – ele limpa a garganta e solta a pergunta: – O que aconteceu em São Paulo?

Paro de me balançar e miro meu avô. Através das lentes de seus óculos, noto olhos azulados interrogativos, aliás, uma herança genética pela qual agradeço todas as manhãs. Nossos olhares são idênticos, com rajadas esverdeadas e douradas.
Respiro fundo e me preparo psicologicamente para a conversa. Sei que meu avô não arredará o pé daqui enquanto eu não desembuchar o que tanto me atormenta.

— Eu não sei qual é o meu problema, vô. Não gosto de me meter em encrencas, mas é impressionante: elas vivem se metendo comigo.

— Tem algo a ver com o Roger? É esse o nome dele, não?

— Não foi só ele. Teve o Alan, o Reinaldo e também o carinha da acamela. Todos me traíram, eu só atraio tipos assim para a minha vida. – lamurio-me.

— Vamos nos concentrar na última encrenca. O que aconteceu? – vovô toma assento ao meu lado, encontrando uma tremenda dificuldade em sentar-se no balanço pequeno demais para seu bumbum avantajado.

— Quer mesmo saber? – indago, pesarosa.

— Não me esconda nada.

— Ok. – faço uma pausa para rememorar os detalhes sórdidos. – Roger e eu estávamos juntos há quase um ano. Tínhamos uma reunião importante naquele dia. Um cliente poderoso lançou uma concorrência entre três grandes agências de propaganda da capital. Era a nossa chance, a minha oportunidade de provar que não sou apenas um rostinho bonitinho e que mereci o cargo de Diretora de Criação.

— Roger é o proprietário da agência, seu chefe, correto?

— Ex-chefe e ex-namorado. – bufo.

— Continue. – vovô incentiva.

— O fato é que o Roger estava atrasado para a reunião. A sala estava montada, minha apresentação pronta e nada do cara aparecer. Quando o cliente chegou, eu quase tive um surto psicótico.

— Não seria a primeira vez. – vovô lança uma gargalhada gostosa no ar, mas logo se recupera. – Desculpe, querida, prossiga.

Forço a memória a trabalhar. A cena se desenrola facilmente em meu cérebro fervilhante. Respiro fundo e dou voz as lembranças, como se tivessem ocorrido ontem:

— A sala do Roger é local proibido para qualquer funcionário da agência. Nem a faxineira pode limpar o lugar sem a prévia autorização do chefão. Nunca soube o motivo de tamanha paranoia, até aquele dia. Acreditava ser TOC ou outra doença mental qualquer.O fato é que precisava encontrá-lo e rápido. Ninguém sabia do paradeiro dele e o carro estava na garagem do prédio. Quando ouvi o celular do patife tocando dentro da sala, esmurrei a porta e não houve resposta.Pensei que ele estivesse em apuros, que um aneurisma fatal pudesse tê-lo derrubado, afinal, Roger nunca deixava o celular para trás, nem para ir ao banheiro.
Nesse ponto, mais do que decidida e angustiada, resolvi colocar em prática o lado MacGyver que você me ensinou.

— Arrombou a porta com um grampo de cabelo?

— Dois clipes. – elucido.

— Também funcionam muito bem. – vovô concorda, com um sorriso orgulhoso. – E o que encontrou ao entrar?

— Descobri o motivo daquela sala ser proibida para qualquer funcionário. – entro em devaneios e murmuro: – Que cara maluco.

— Demetria? – vovô estala os dedos e volto a narrar.

— Bom, me deparei com um sistema de monitoramento de última geração. Tive a impressão de estar no quartel general da CIA, haviam câmeras fantasmas espalhadas por toda a agência. – explico.

— Impossível detectar? – vovô tira os óculos e limpa as lentes na camisa. – Isso é proibido por lei.

— É, eu sei, mas o fato não tem muita importância agora. O lance foi que, quando me aproximei da mesa suntuosa daquele babaca, dei de cara com um monitor gigante e todas as câmaras estavam transmitindo, inclusive a que ele escondeu na escada de incêndio.

— Por que essa câmera é especial? – vovô coça os olhos e recoloca os óculos. – Ele estava lá? Na escada de incêndio?

— Acredita? Uma reunião mega importante para a empresa iria começar e o filho da mãe estava dando uma com a secretária boazuda dos peitos comprados. – uno as sobrancelhas, em dúvida. – Ainda acho que a bunda dela também foi comprada.

— Pegou seu namorado com a secretária na escada de incêndio. – vovô suspira, pensativo. – E o que você fez, Demi?

— Engoli a minha fúria e a profissional entrou em cena. Fui para a reunião e dei o melhor de mim. No meio da apresentação, o cretino apareceu com a maior cara lavada.

— Conseguiu ao menos terminar a sua apresentação?

— Terminei e o cliente curtiu. Mas então, o filho da puta com o ego do tamanho do Empire States resolveu puxar a sardinha para o lado dele, dizendo que a ideia da campanha havia saído daquela cabeça com os primeiros cabelos brancos aparecendo. – minha voz sobe alguns decibéis. – Poxa, vô, a ideia da campanha foi minha! Eu trabalhei semanas com a equipe de criação para bolar as peças mais criativas de que aquela agência já teve notícia! E o canalha simplesmente lança que a coisa toda partiu dele?

— Hum. – vovô une os indicadores na altura do queixo, reflexivo. – Já posso imaginar o final dessa história. Se eu bem conheço meu caldeirão em ebulição, você partiu a cara dele ao meio.

— E encaçapei as bolas também! – dou um soco no ar e então, cerro as pálpebras, arrependida. – Droga, vô, perdi o controle, para variar.

— E o emprego, pelo visto.

— E minhas economias, já que o desgraçado está me processando. O juiz congelou minha poupança até o veredito final.

— Nunca vi a justiça andar tão rápido nesse país. – vovô força um sorriso.

— O pai do safado é o juiz. – revelo, tristemente. – Sacou o meu drama?

— Não conte isso à sua avó. Ela é bem capaz de juntar todos os malandros de Paraty e pagar uma boa grana para finalizarem com esse tal de Roger. – vovô brinca e me arranca um sorriso Melancólico. –Demi, esse fulano não merece você.

— E eu, vô? O que eu mereço? – choramingo.

— Toda a felicidade do mundo, meu amor.

Um comentário:

  1. Que estoria fixe. Gostarque continues com ela. Também já li no blog web e tenho a certeza que a vossa parceria serà de matar. Bjs que Deus the abençoe.

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