sábado, 12 de dezembro de 2015

Capítulo 9



De volta à pousada, deitada preguiçosamente em uma rede confortável, repasso mentalmente toda a minha vida como se a qualquer momento eu pudesse deixar de existir. Uma tristeza estranha me invadiu após a conversa com Espírito.
Sinto um ciúme ácido corroendo as entranhas, mordiscando meu coração estraçalhado. Não entendo. Achei que tivesse superado Joseph. Como bem disse o meu amigo, eu o apaguei da minha vida assim como fiz com a louca da minha mãe.Naquela época, eu não me senti um lixo fétido como acontece agora. De alguma forma eu sabia que Joseph nunca deixaria de ser meu, tinha essa certeza doente de que ninguém tomaria o meu lugar.
Fui embora e vivi a minha vida, não fui nem capaz de deixar uma carta de despedida. Saí de Paraty naquela certeza absurda de que ele me amaria por todas as horas, todos os dias, até o fim de sua vida. E eu vibrava com essa certeza.

Como pude ser tão estúpida?

Uma brisa cálida traz um odor conhecido, que faz com que minhas papilas explodam em felicidade. Café fresco e pão de queijo. Remexo-me ligando o radar, deixando minhas narinas seguirem o rastro rumo ao paraíso.
Não preciso ir muito longe. Vejo Espírito, com uma bandeja em mãos, adornada por uma toalha de chita caindo pelas beiradas. Sento-me um tanto desconfortável e aguardo. Ele deposita calmamente a cesta com os pães quentinhos, duas xícaras e um bule de café sobre a mesa de apoio.

— Peguei pesado com você, deixe-me compensar o estrago. – ele serve o café e me estende uma das xícaras.

— Imagine. Você só me pregou numa cruz e depois ateou fogo, como a bruxa má que sou. – dou um sorriso triste, mas sincero. – Eu mereci cada palavra, não se preocupe. Já é quase noite. Contemplo o céu, inspirando os inúmeros aromas que nos circundam. Há pouquíssimas nuvens e o sol dá um espetáculo especial para aqueles sortudos que possuem tempo e podem vislumbrar algo além de duas dimensões.

— Eu tinha que dizer alguma coisa, Demetria. Mesmo que não aceite trabalhar no hospital, acabará trombando com o Joseph em alguma esquina. Quero que esteja preparada.

— Por que acha que devo me preparar? – indago, aflita. – Continua com esse negócio de prever o futuro? Ainda brinca de oráculo?

— Faz parte de mim e não é uma brincadeira. – ele umedece os lábios e beberica da xícara fumegante. – Algo que diz que você vai se machucar e eu não quero que isso aconteça.

Eu o encaro, estreitando os olhos. Espírito sempre teve o dom de prever acontecimentos futuros, sem muita precisão, é verdade. Mas muito do que ele me revelou acabou acontecendo, de uma maneira ou outra. Talvez eu deva dar ouvidos ao que ele está profetizando.

— Acha que posso me apaixonar por ele novamente, é isso? – deixo minha melhor risada incrédula escapar. – Não vai acontecer, eu prometo. – e selo essa afirmativa beijando os dedos em formato de cruz. – Não quero me envolver com ninguém agora, muito menos uma pessoa do meu passado. E sério, o Joe não pode ter mudado tanto assim… ele nunca fez o meu tipo!

— Ainda assim, foi o primeiro e grande amor da sua vida. – ele relembra e eu estremeço. – E que eu saiba, o amor não é guiado por tipos físicos, Demi. É algo muito maior do que isso, muito além do corpo… é espiritual.

— Falou o mestre zen. – tento parecer descontraída, mas a verdade é que todos os músculos do meu corpo estão retesados. Até o café encontra barreiras para descer redondo pela garganta. O pão de queijo me chama, mas tenho medo de comer e engasgar.
Espírito suspira ruidosamente, sem tirar os olhos dos meus. Não desvio, afinal, ele é uma das poucas pessoas que consigo encarar dessa forma por tempo indeterminado. Não tenho medo do que ele possa ver na minha alma e vice-versa. Não temo pelo seu julgamento.

— Quando reencontrar o Joe, tente não ferrar com tudo, está bem? Prometa isso. – há uma sombra nos olhos do meu amigo.

— Prometo.

Ele me fita com um semblante cético e cerra as pálpebras, balançando a cabeça para os lados, antevendo o meu futuro novamente:

— Droga, você vai ferrar com tudo.


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